Trecho de uma crônica (Não Mais Aflitos), que Rubem Braga escreveu e a Folha da Manhã publicou, em maio de 1946: "Assim é o homem que espera a mulher. Vê o relógio, fuma, e telefona. Sabe que ela vem; tem vindo. Pode estar tranqüilo; mais cinco minutos e chegará. E, como é natural, ela chega. Mas no bojo desse fato simples, esperado, certo há um elemento de surpresa, um recôndito milagre. O instante em que ela chega pode ser rigorosamente previsto. Sabemos que está no trem; mas quando o trem pára e ela surge, isso não é um fenômeno que vem atrás do outro numa cadeia de coisas. Essa presença é sempre um fato inédito, o céu interveio. Ou não digamos o céu; vamos dizer que a força secreta da vida saltou de súbito, produziu um instante livre, novo, solto em si mesmo. Não foi o ônibus, nem o trem, nem o taxi que a trouxe. Se ela veio andando não veio andando pela rua. É evidente que podemos reconstituir materialmente sua viagem; mas no instante em que chega há o leve choque de algo que aparece, como a leve carga de chuva grossa e rápida que uma pequena nuvem lança, ou como um raio de sol que intervem, louro, fino, vibrante, entre duas massas de penumbra. Se ela desceu atrás da casa pelo pomar, sentimos que não apenas passou sob as mangueiras. "Baixou" como dizem os espíritas.
É uma realidade superior, um mundo de fantasias que se encarna de súbito aos nossos olhos. A natureza da mulher é assim feita não só da estrita carne e da voz, os olhos líquidos e os cabelos, a tênue veia atrás dos joelhos, os vestidos, a boca e, santo Deus, os braços; há a substância improvisada de algas, nuvens e brisas; e mais. Um leve murmúrio de estrelas. Está visto que falar assim é dizer bobagens. Mas por que lembrarmos a leve onda trêmula, ou um apito longo de trem que ouvimos uma tarde numa capoeira, depois de um silêncio deixado por um bando de periquitos? As sensações da vida sobem dentro de nós; há um leve aperto de garganta. Lembramos inhames à beira do córrego, e o calor do pescoço do cavalo sob a crina; em alguma parte há marolas gulosas de água verde lambendo o batelão.
É flor! É inacreditável como a mulher se parece com a flor. Fixemos uma flor. Sabemos o que é, como nasceu, e que morrerá. Mas nossa botânica não explica a frescura desse milagre; nem muito menos porque nos emociona. Podemos passar diante de uma casa de flores, e ver, e achar belas as flores. Mas a flor que de repente nasce no muro familiar, que adianta prová-la? É uma aparição; algo que traz do fundo da terra uma inesperada palavra de candor. Parece dizer: eis-me aqui. E não é apenas a brisa que a estremece: é a vida. (...)"
Bonito, né?